Ética da Resistência (3): O ceticismo é um humanismo: entre certezas e dúvidas (dogmatismo e sofística) 

08/08/2020

por Alan Monteiro

O ceticismo é uma luz na escuridão dos absolutismos. Que a razão e a natureza nos são nossa "doce guia", segundo Montaigne, essa filosofia não nos impede de seguir. Mas entre o atroz e a fantasia de uma perfeita utopia, ela nos conduz pela humanidade.
O ceticismo é uma luz na escuridão dos absolutismos. Que a razão e a natureza nos são nossa "doce guia", segundo Montaigne, essa filosofia não nos impede de seguir. Mas entre o atroz e a fantasia de uma perfeita utopia, ela nos conduz pela humanidade.

Nos últimos textos estabeleci as premissas essenciais para uma ética da resistência. O que pretendo fazer neste texto é olhar um pouco mais fundo em alguns aspectos da moral e da ética, contudo, sob uma perspectiva um tanto diferente. O que ainda mantém os assuntos conectados é a relação entre valor e verdade. Contudo, enquanto anteriormente tive como principal preocupação o valor (já que falei de moral e ética), o que os separa é que, desta vez, irei focar mais na verdade.

É o cúmulo da ironia considerar o tema da verdade como polêmico, mas eu estaria sendo desonesto se não admitisse essa realidade. Caímos no abismo dos abismos. Quando a verdade é tão líquida como nós a fizemos, cria-se o pretexto para o que vemos hoje: entre pessoas com certezas absolutas e inflexíveis e outras despidas de qualquer convicção, propensas a serem levadas pela correnteza desse mar de terra.

Nos encontramos num cenário escasso de razão e rico em emoção. É precisamente o que nos impede de nos unir. A dicotomia que eu havia apontado no primeiro texto é a mesma. Gostaria de explorá-la. Se você me acompanha, vamos dar uma caminhada por esse bosque de angústias e apreciar nossas diferenças para apaziguarmos a discórdia; fazer dos fragmentos a que nos reduzimos a partilha de nossos corações.

Antes de abordar diretamente a verdade como conceito, julgo mais prudente darmos uma olhada em nós mesmos primeiro. Se há uma verdade, o fator que mais nos divide é o nosso acesso a ela. Devemos lembrar que fake news e pós-verdade não são palavras estranhas hoje em dia. Como conhecemos? O que conhecemos? O que nos permite verificar a veracidade de certas afirmações? Não pretendo responder a essas perguntas de forma exaustiva. Na verdade, não pretendo sequer responder essas perguntas. E é exatamente o que incorpora a mensagem deste texto.

O problema inicial ao qual nos submetemos enquanto seres racionais é a questão da verdade. A razão, presumidamente garante ao ser humano a capacidade de aferir o verdadeiro e separá-lo do falso. Quer dizer que, de certa forma, o que nos diferencia dos outros animais é que o ser humano é sempre capaz de se enganar, pois ele se pretende conhecedor da verdade. E nessa jornada, a trilha é traiçoeira. O animal não racional não busca a verdade, ele apenas a vive. Talvez isso o torne melhor que nós, mas o juízo de valor é de cada um. Contudo, independentemente dos juízos de valor, não há nada de errado em viver conforme a natureza. Inclusive, não é essa a qualidade mais essencial da verdade? Ela é natural. E a natureza, como a verdade, como a razão, não é de uns ou de outros, mas ela é de direito e todos somos seus súditos. Mesmo que se negue, esperneie, resmungue e xingue, continuamos sujeitos da verdade, da natureza. E a razão é o que nos torna conscientes desse fato, e o que nos dá nossa consciência de nós mesmos. O animal não se preocupa com sua própria existência, com valores morais e sociais. O animal age por impulso. O que nos diferencia dos chimpanzés, por exemplo, nosso parente genético mais próximo, é nossa racionalidade. Eles vivem no aqui e no agora, para suas necessidades imediatas e vontades latentes. Nós nos preocupamos demasiado com o futuro e com o passado e pouquíssimo com o presente. Como Pascal nos adverte:

"Examine cada um os seus pensamentos. Vai encontrá-los a todos ocupados com o passado ou com o futuro. Quase não pensamos no presente, e se nele pensamos é somente para nele buscar a luz para dispormos do futuro. O presente nunca é o nosso fim. O passado e o presente são os nossos meios, só o futuro é o nosso fim. Assim não vivemos nunca, mas esperamos viver e, sempre nos dispondo a ser felizes, é inevitável que nunca o sejamos."

Temos então um primeiro fator que nos liga mais peculiarmente com a verdade: a autoconsciência. É a característica que nos isola do mundo e que cria a dúvida, bem como a certeza. É o que nos condena à solidão. Mas nossos próprios impulsos naturais nos empurram para a companhia, para a amizade. Ora, essa necessidade de partilha vem da racionalidade, pois ela que nos permite criar a linguagem e nos comunicar, nos aproximar, é o que dá sentido à palavra comunidade. Afinal, viver só é também viver com a própria companhia.

Se nos bastasse a razão, não estaríamos onde estamos, na situação miserável e sofrível de nossa realidade. É que mesmo que a razão nos distinga dos outros seres, nós ainda somos animais, e ainda somos regidos muito mais pela vontade do que pela razão. A questão, então, é que conhecimento não é nada sem a vontade de exercê-lo. Até mesmo para o filósofo ou para o cientista, só se conhece porque se quer conhecer. A verdade, nesse sentido, é também um valor. A verdade só vale para nós na medida que a valorizamos. Isso não elimina o fato de que continuamos sujeitos a ela. Mas isso nos torna indissociáveis do primeiro problema que abordei nessa série, que estamos entre a verdade e a vontade, não em uma nem em outra de forma isolada, mas em ambas simultaneamente.

Se a razão é o que distingue o ser humano de um animal qualquer, é a vontade e as paixões que o distinguem de um robô. Somos únicos exatamente por isso. Uma combinação majestosa e também altamente fatal. Quando a vontade se pretende verdade ou quando a verdade se pretende reitora da vontade, o ser humano é capaz de grandes atrocidades para se justificar. Indistintamente, o homem vive de pretensões.

Mesmo que nós sejamos afetados pela verdade na medida que a valorizamos, ela não se sujeita à nossa vontade, por isso ela não é relativa, por isso ela existe: pois mesmo que eu a negue, na "verdade" que a verdade não existe, a verdade ainda permanece, nem que seja para se condenar. Nisso ela é inevitável. É esse o ponto principal que reconhecem os estoicos e que pregam os benefícios de alinharmos nossas vontades conforme a natureza. A verdade, dizem eles, nós não controlamos, portanto não devemos confiar nossa felicidade ao seu controle. Controlamos apenas a nós mesmos, nossa vontade. Não controlamos o que nos acontece, mas podemos controlar como esses acontecimentos nos afetam, como reagimos a eles. É assim que, na filosofia estoica, o homem se torna mestre de si mesmo. É o predomínio da razão perante as emoções.

Essa estratégia é milenar: razão sobre emoção. As vantagens são esmagadoras se comparar o inverso. Quem deixa as emoções domarem a razão, morre cedo, não por falta, mas por excesso, antes do corpo, perece na alma pela falta de escrúpulos. Contudo, razão sobre emoção não é uma prática tão simples, tampouco perfeita. Os estoicos, por exemplo, em alguns aspectos, podem ter ido longe demais ao afirmar a razão (ou não foram longe o suficiente como gosto de ver, mas isso eu esclareço um pouco mais a frente).

O estoicismo é uma busca da sabedoria, através da virtude, a qual alcança sua excelência através da razão. É uma tentativa de ver o mundo sem lentes, como ele realmente é. A verdadeira meta é o autodomínio, através do progresso espiritual, isto é, não se constitui apenas de um conjunto de regras e hábitos, mas de uma predisposição para sequer praticá-los. Trata-se no fim, de saber querer, pois a vontade é a única que verdadeiramente está sob nossa mercê. Creio que a conjugação desses dois verbos juntos captam o espírito dessa filosofia: "Saber querer". É preciso conhecimento sobre a realidade para poder coordenar sua vontade de acordo com seu movimento. O mesmo vale se as palavras trocassem de ordem: "Querer saber". É senão o coração da própria Filosofia. Não há filósofo que o seja sem a vontade pelo saber; ainda mais: não há bom filósofo que o seja sem o amor pela verdade.

Nisso, o estoicismo é inestimável. No entanto, a razão não é tudo e as emoções não podem ser simplesmente suprimidas. E mesmo se o forem, não é a liberdade que alcançamos com essa prática. Muito pelo contrário, construímos uma prisão dentro de nós mesmos. Nesse ponto que talvez os estoicos extrapolaram em seus dogmas: a disciplina vira cárcere; a razão, em vez de líder, vira ditadora. Mas não julgo que seja o suficiente para abandonar a doutrina estoica. É preciso contudo, repensar as possibilidades do conhecimento.

Há uma essência humana, uma "magia", ouso brincar, da simplicidade e da ignorância, da pureza da vivência que a razão, por si só é incapaz de desfrutar. Às vezes, é preciso viver o momento, sentir as emoções, expressar os anseios do coração. Somos demasiadamente humanos, como dizia Nietzsche. Assim como no primeiro texto eu havia falado que o dever não é suficiente para vida, em especial para ser feliz, e a felicidade tampouco, em especial para cumprir o dever, aqui a razão é insuficiente, assim como a emoção. Vivemos num pêndulo entre dever e felicidade, entre razão e emoção; entre verdade e vontade, entre certezas e dúvidas. Uma vida sábia, então, é uma vida de meio-termos? Não necessariamente, ao menos não é essa mensagem central que procuro passar. É um ensinamento antigo que podemos encontrar em Montaigne:

"O mundo é movimento; tudo nele muda continuamente. Não posso fixar o objeto que quero representar: move-se e titubeia. É pois no momento mesmo em que o contemplo que devo terminar a descrição; um instante mais tarde não somente poderia encontrar-me diante de uma fisionomia mudada, como também minhas próprias ideias possivelmente já não seriam as mesmas."

Esse movimento é a verdadeira liberdade, é a verdadeira sabedoria: não há prisões. Esse movimento é a verdade: não há certezas que se confirmem em absoluto, apenas sentimentos de prepotência, naturalmente humanos; apenas a inocência de nosso juízo, apenas a frugalidade de nossos corações, apenas a potência para ir além, mas sempre voltando a nós mesmos. O mundo que pensamos e comunicamos é uma pintura de nosso olhar, de nossa linguagem, como diria Wittgenstein. Esse movimento é chamado de ceticismo.

Michel Eyquem de Montaigne (1533 - 1592) foi um jurista, político, filósofo, escritor, cético e humanista francês, considerado como o inventor do ensaio pessoal.
Michel Eyquem de Montaigne (1533 - 1592) foi um jurista, político, filósofo, escritor, cético e humanista francês, considerado como o inventor do ensaio pessoal.

Em Montaigne, esse ceticismo não é o que grande parte dos pensadores na história conheciam. Existem duas espécies de ceticismo: o antigo (ou pirrônico) e o moderno. O antigo é um abismo: não existem verdades. Por mais irônico, a dúvida reina, mas ela é o caos, no qual vivemos em estado de constante dúvida e incerteza, sempre a um passo do desespero. Irônico, pois a dúvida o levara até lá, mas foi abandonada, ou seja, não duvida da inexistência da verdade, o que, por si só, é um equívoco lógico, como expus mais acima. Também pode ser chamado de relativismo prático (ou absoluto). Comte-Sponville, em seu livro Valor e verdade: estudos cínicos, dá mais um nome a esse pensamento: sofística. Quer dizer que como não há verdade, tudo é relativo, e algo só pode estar certo a partir de determinado ponto de vista ou em favor de certo interesse, inclusive a matemática. É preciso, portanto, levar a dúvida além para sair desse abismo.

O moderno, por sua vez é mais sensato: ao contrário de seu predecessor, não é que inexistem verdades, mas sim certezas. A verdade, é incontestável que ela exista, mas nossa certeza sobre seu conteúdo é sempre duvidável. Também pode ser chamado de relativismo teórico. Vejam que a dúvida aqui ultrapassa o absoluto, bem como o absurdo (negar a verdade). Aqui, duvida-se da inexistência da verdade, mas ela se instala no sujeito, aquele que julga a verdade e, portanto, tem nós mesmos como objeto. O caminho dessa vez está certo e estamos chegando mais perto. Entretanto, ainda é preciso ir além se quisermos permanecer fiel à nossa causa: a verdade. O círculo da incerteza que esse ceticismo funda corre grande risco de se tornar vicioso, e certamente não nos livra da angústia que sofríamos no parágrafo acima. De um abismo a outro, precisamos emergir, e a dúvida deve nos acompanhar.

Nem o ceticismo moderno vai tão longe quanto Montaigne. Para ele, ceticismo é pensar que até quando duvidamos da ausência de certeza, precisamos ir além e duvidar disso também, que é possível haver certeza. "Ceticamente céticos", como sugere Comte-Sponville. A superfície enfim! Agora nos encontramos em um novo círculo, contudo esse é o anel exterior, e além dele (a certeza absoluta e absolutamente indubitável) o caminho é selado. Para lá, jaz um campo escuro no qual muitos lá embaixo creem estar e que para nós, humanos, não nos compete: chama-se dogmatismo.

É aqui, portanto, que devemos nos acomodar, pois essa viagem a qual nos comprometemos, nos guia em um eterno retorno. Sempre voltamos a nós mesmos, mas perceba que o movimento é sempre em frente, e se voltamos ao mesmo lugar, voltamos maiores, pois cada vez mais aprendemos sobre nossa pequeneza, enquanto trafegamos na imensidão desse oceano que chamamos de existência.

Devemos compreender, contudo, que não é algo simples como respirar. A primeira coisa que nos cabe perceber, é que a vida, por si só, já é um dogma, uma audaciosa afirmação entre dois vazios (antes do nascimento e depois da morte), "uma aventura entre duas noites", como mais ou menos dizia Pascal. Em qualquer que seja o extremo, na sofística ou no dogmatismo, há uma afirmação, um vislumbre de absoluto. É que a vida nos exige crer. A razão nos fornece o que precisamos para viver, ela é o nosso como. A emoção nos eleva com o que precisamos para querer viver, ela é nosso porquê. Se não houvesse por quê viver, não haveria por quê manter a vida. E assim, entre certezas e dúvidas, antes de "crer que sabe", deve-se "saber que crê", já nos aconselhava Jules Lequier. É o paradoxo da sabedoria, segundo Nietzsche: "O homem que mais sabe é aquele que mais reconhece a vastidão da sua ignorância."

Esse ceticismo, por fim, transpõe para a ética. As qualidades adquiridas por esse modo de conhecimento garantem uma mentalidade não só sábia, mas justa, e nos conduz pelas virtudes da generosidade, pois nos ensina a amar a verdade e nos compele a demonstrar carinho pelas coisas e pelas pessoas, uma vez que não há descartes nessa filosofia, há movimento, aprendizado; da humildade, pois nos revela a miséria de nosso intelecto, nos expõe a falta de absolutismos e, portanto, nos ensina a crescer através de nossa pequeneza; coragem, pois o dever que fundamos é tão profundo e tão sério que sentimo-nos obrigados a fazer sacrifícios próprios se necessário: não haveria justiça se não houvesse quem tivesse coragem para praticá-la. E sempre, presente em qualquer uma dessas virtudes, a epítome moral dessa filosofia: dignidade e respeito, pois "todo homem tem direito", como disse Kant, "a ser considerado como um sujeito moral e moralmente respeitável". Em uma palavra: humanidade.

É uma filosofia que cultiva a vontade, em harmonia com o conhecimento. É o que Sócrates falhou em ver no seu tempo, uma vez que para ele o conhecimento era suficiente para praticar o bem. E é o que os estóicos corrigiram. E por isso, o estoicismo é progresso espiritual e moral, pois não apenas se esforça para conhecer, mas querer conhecer. Dessa maneira, para a humanidade "mal é injustiça e crueldade e indiferença para um problema do vizinho", afirma o filósofo estoico Gaius Rufus, "enquanto a virtude é amor fraternal e bondade e justiça e beneficência e preocupação pelo bem-estar de seu vizinho."

Assim, somos verdade e vontade, certeza e dúvida, assim como no exílio do meu próprio juízo, sou solidão e companhia. Por que resistir, e resistir a que, além da barbárie, da morte e da ilusão? A nós mesmos, pois somos sempre, de um jeito ou de outro, vítimas de nós mesmos, de nossos desejos e angústias, de nossos medos e aflições, de nossas circunstâncias e de nossa história. A tensão é eterna, mas a cada volta no eterno retorno, podemos retornar melhor hoje, do que fomos ontem. Somos humanos demais para nos condenarmos de forma tão convicta. Por isso, o ceticismo no conhecimento: o absoluto está fora de nosso alcance. Por isso ele resulta na humildade na prática, e no amor, sempre que possível, pois amar a verdade, como um bom cético faz, é amar compreender o outro. O ceticismo é um humanismo.

Sou estudante de Filosofia na Universidade Católica de Santos, apaixonado por essa arte de viver. Nela percebo que sou um vivente, longe de qualquer perfeição. Abraço o ceticismo com carinho e com ele busco uma vivência ampla a possibilidades do conhecimento. O limite do conhecer está no querer.

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