Bolsonaro e a ideologia do real impossível
por Raphael Cappello Ialangi

Durante todo o século XXI, a política foi permeada de Fake News; notícias bizarras como a tal "Mamadeira de piroca" ganharam vida através de uma narrativa ideológica, e não foram poucos os adeptos a esta realidade, percebemos isso pela própria eleição de figuras como Trump, Bolsonaro, e entre outros líderes que baseiam-se ideologicamente em discursos desconstrutivos do real. Com isto, as questões primordiais da realidade ganham corpo: O que seria o real? Podemos tocar em algo exclusivamente real? A razão ultrapassa essa barreira ideológica? Ora, poderia haver algo que não seja refém da ideologia? Examinaremos neste breve texto algumas dessas perguntas, principalmente sobre a ideologia.
Certa vez navegava tranquilamente pelo Facebook, e me deparei, ao rolar o Feed, uma publicação que dizia mais ou menos assim: "Foi Deus quem o levantou para governar essa nação", quem estava dizendo essa frase em questão era a ministra Damares Alves. Logo, senti uma certa preocupação em dois aspectos principais dentro dessa frase, são esses o conceito de salvador, e também, a própria pátria em declínio. Em primeiro momento, me deparei com uma certa invenção do idealismo: a figura de salvação remete a um signo em declínio, mas como posso ter a figura de salvador, sendo que, a queda de valores é em si mesma subjetiva, já que no cunho individual, a valoração de algo é puramente do Eu? Podemos destacar então uma certa ideologia que assombra a subjetividade - se é que afirmamos com unhas e dentes a existência de algo subjetivo -, para que eu me sinta pertencente a algum local, grupo social, de amigos ou até mesmo em determinada profissão, é necessário que a consciência se torne um todo unido, que em seu bojo carrega uma mesma consciência em divisão constante entre as unidades desse todo. Quando os eleitores do Bolsonaro se juntam em grupos, seja no Whatsapp, ou até mesmo em manifestação na frente do planalto em meio a uma pandemia, a consciência sai do indivíduo solitário se englobando em outros indivíduos, agindo assim com um organismo vivo. Essa espécie de consciência modifica o real constantemente, e ninguém está acima dela, somos todos consciência em grupo. No entanto, observamos uma crescente negação do concreto, da pura matéria real se subordinando cada vez mais a esta consciência coletiva, que por vezes exclui qualquer limite de diálogo entre o mundo e a consciência.
Husserl, um dos principais pensadores da fenomenologia (corrente de pensamento que se preocupa com o estudo dos fenômenos) concluiu que a consciência é apenas consciência de algo, não podendo existir uma consciência fora do mundo, ou seja, das coisas mesmas. Porém, quando a consciência se torna refém de um coletivo, a coisa que percebo e faço um processo de captação dela (vejo que o cigarro que fumo está queimando, minha consciência se preenche então pelo cigarro queimando), ganha um papel maior, já que após se transformar em um organismo vivo, a consciência carrega em seu bojo a ideologia. Não percebo mais o cigarro queimando como puro cigarro em chamas, mas identifico ali vários fantasmas que preenchem esse objeto: por eu combater o câncer, observo o cigarro como algo maligno, mas também posso admitir a ideia de que o cigarro não faz mal, e com isso não ter a preocupação. Mas essa ideologia que nega os efeitos prejudiciais do fumo coloca a realidade contra si mesma, já que a própria matéria, ou seja, a ciência rigorosa se desfaz em cunho de ideologia. Caímos assim num abismo do real, onde a própria coisa mesma, com todas as propriedades materiais que a constitui, torna-se relativa na própria existência, negando assim a existência de sua percepção. Este é o grande poder da consciência (e sua maior ameaça).
Bolsonaro diz, no meio de seu discurso sobre a pandemia de COVID-19, sendo esse o vírus que deixa um rastro de angústia, morte e impotência diante da imprevisibilidade da realidade onde quer que ele passe, a seguinte frase: "Depois da facada, não vai ser gripezinha que vai me derrubar, não, tá ok? Se o médico ou o Ministério da Saúde recomendar um novo exame, eu farei. Caso contrário me comportarei como qualquer um de vocês aqui presente". Essa é uma frase explicitamente embriagada pela ideologia; ao afirmar que o vírus seria apenas uma "gripezinha", Bolsonaro coloca a ideologia diante do preenchimento do fato em si, criando assim, a negação do real. Mesmo após todas as mortes ao redor do mundo, a força da ideologia sobrepõe qualquer fato. E esse mesmo efeito se vê nos outros membros dessa mesma consciência coletiva: não é apenas o Bolsonaro o culpado desse discurso, mas sim uma ideologia muito maior do que a própria imagem do Presidente.

Sou um estudante de Filosofia na Universidade Católica de Santos, embriagado pela literatura e pelo cinema. Sou apaixonado pela possibilidade: não quero certezas e tampouco anestesia diante de caos, mas apenas a ruptura que a possibilidade trás em seu bojo. Bebo em Balzac os pesos de existir, olho nas películas de Bergman a profundidade do sentir e busco em Caetano a dureza de lutar. Filosofar é combater o impossível.